Para ler ouvindo “A Grande Onda”, do Cícero.
(Sim, o título desta crônica é uma cópia descarada)
(Após uma ressaca eleitoral pior do que ressaca de vinho seco, procurei escrever para mandar a cefaleia para aquele lugar)
No domingo, 07, votei pela segunda vez na vida. Um dia antes, revirei a casa toda procurando o dito título de eleitor. O guarda-roupa ficou até que arrumado, o contrário de quando não procuro algo dentro dele. Meus dedos tateavam pastas e caixas dos quartos. Coloquei para tocar na vitrola o LP que está nela desde o mês passado. Pensei que ajudaria na busca, mas só fez com que o tempo decolasse e o dia seguinte estava logo aí, na minha janela. Era mais ou menos duas da manhã quando o encontrei. Estava lá, da mesma cor, conservado dentro da capa de plástico que comprei de um cara no metrô. Hora de trabalhar, meu amigo, a vida boa acabou.
Dez pulinhos antes de dormir. Mais uma vez o dia foi salvo, graças a São Longuinho.
Acordei relativamente cedo. Repassei na cabeça os números dos nomes que estavam na cola que guardei na carteira. Seis nomes ao todo. Após um demorado café da manhã proposital, saí. Sim, o dia não era dos melhores. O tempo não ajudava, as pessoas não ajudavam, os políticos não ajudavam… eu não ajudava.
Entrei no carro de um motorista de aplicativo. Meu nome, destino, confirmar, seguir. Não me recordo agora do nome do rapaz que dirigia, algo entre Laércio e Chico. Perguntou se a música que tocava no rádio estava agradável. Olhando pelo retrovisor, o motorista viu minha cabeça afirmando. Durante o percurso, ele tentou puxar assunto comigo. Perguntou qual era a minha zona eleitoral e o que achava de tudo o que vinha acontecendo no Brazil, baby. Adotei monossílabas como resposta.
Percebi claramente o jogo de adivinhação que estávamos participando. Ganhava aquele que respondesse corretamente os números que seriam teclados na urna eleitoral. Os únicos números que importavam no dia 7. Acho que até mesmo a mega-sena fora deixada de lado. O prêmio que o povo queria era maior…bem m-a-i-o-r. Olhei ao redor do carro para ver se alguma bala de hortelã estava dando sopa por aí. Até as balas foram votar, era só o que faltava. Desci do Chevrolet Onix sem ganhar o jogo. O motorista também não soube me decifrar, nem espiar minha cola. Ambos perdedores.
Ao pisar no concreto esburacado de São Paulo, quase fui arrastado pela onda. E não, não era água. Era papel! Segurei-me em uma grade e consegui manter firmeza no meu passo. Mas o que era tudo aquilo, afinal? Minha consciência retornou ao lugar certo da cabeça e lembrei a época que estamos.
Rostos e números, rostos e números, rostos e números, rostos e rostos e números e rostos e números e cores e números e era azul, vermelho, verde, laranja, cinza e rostos e números voltavam e eram mais rostos e números e…
Eu estava cara a cara com a onda de papelzinhos de candidatos. Se não fosse filho de orixá, eu juraria ter entrado acidentalmente no céu católico. Havia santinhos por todos os cantos. Esperavam ansiosamente o resgate por mãos humanas. Clamavam!
Subi as escadas da escola pública onde voto e tive sorte de chegar até o topo. A maré estava alta e a onda de papel fazia senhoras e crianças acompanhadas dos pais levarem um baita escorregão. Dois adultos disfarçaram a queda simulando uma dança meio tango e hip hop. Até nas dificuldades buscamos um jeito de dançar. As ondas estavam brabas logo naquele horário, imagine mais tarde. Santinhos invadiam casas próximas e a própria escola estava se afogando. Não sei nadar em pilhas de papel, melhor correr!
Sem muita demora, encontrei a sala. Apertei um total de dezenove números e um E-N-O-R-M-E FIM apareceu na tela da urna. Seria isso um aviso? Apressei o passo e cruzei o corredor que me levava até a saída. A cena nas ruas era caótica: pessoas sendo levadas pela enchente de celulose. Demorei um cinco minutos até descer por completo os degraus da escola. Com muita reza e precaução, o perigo maior havia passado. Não fiz hora, pedi um carro. Enquanto esperava, analisei o rosto de cada santinho abandonado no meio-fio. Meirelles, Haddad, Alckmin, Marina, Bolsonaro e companhia limitada estavam todos reunidos, provavelmente planejando as próximas quedas e enxurradas. Vocês são todos iguais! Como podem fazer isso?
Antes que a pergunta fosse respondida, um motorista chamado Antônio havia chegado. Entrei Ford Ka preto (seria luto?), coloquei o sinto de segurança. Ele perguntou se eu tinha alguma rota de preferência. Implorei para seguir o GPS. Não era um bom dia para sair de casa e fazer hora na rua.
Após o dia 7, em menos de um mês a nova grande onda chegará. Até essa data, preciso me decidir: canoa ou lixeira azul para a reciclagem?
Fica a dúvida.
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